sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Consideração auto-reflexiva II

Na primeira consideração sublinhei o falhanço de Música e Poder, na avaliação total do carácter inamovível do essencial dos gostos dos públicos que frequentam concertos da música "clássica".
O segundo falhanço dessa investigação, de outros pontos de vista útil, documentada e até, em certos casos, premonitória, reside a meu ver actual, na insuficiente consideração da importância decisiva dos intermediários culturais na definição geral da vida musical dos países. Não digo que o assunto não seja lá abordado. Simplemente, os vários casos de longos anos nos cargos de muitos intermediários culturais no passado não tende a mudar nem a ser submetido a escrutínio democrático. Há uma tarefa a cumprir e, fazendo-o, tudo prossegue com normalidade. Por vezes há mudanças a par com mudanças de governos mas esse aspecto, só por si, não tem grande significado: tem mais relações com a vasta lista dos membros dos partidos políticos, ou próximos deles, com ligações à administração cultural, não se traduzindo em mudanças de fundo na estrutura que regula a vida cultural em geral - variando o financiamento nas eternas fases de crise - que analisem e contribuam para uma nova concepção da cultura nas sociedades.

Uma vez dito isto, a minha tomada de posição contra a orientação artística da Casa da Música relativamente aos compositores portugueses é justa, é observável, pode-se documentar com dados e números, mas peca por ser de uma ingenuidade gritante. Escrevi então: "Se não posso obrigar António Jorge Pacheco a gostar (nem a ouvir...), também ele não me pode obrigar a gostar dos seus critérios, nem do peso mais do que óbvio do Réseau Varèse e dos seus favoritos. Estamos quites nos nossos direitos pessoais. Ponto final." O que está dito, está dito e foi dito várias vezes. Quando está escrito não pode ser apagado, nem é caso disso. No entanto não me cabe mais nada. Cabe ao Estado, à tutela e sabemos a distração que impera neste micromundo face a esta área. Por isso devo aplicar a mim próprio a teoria frequente no poder do "quem é que ele se julga?". Em breve será claro que nada de especial. Julgo ter composto algumas boas peças mas ser juiz em causa própria é suspeito, problemático e talvez errado. A única forma de poder regressar ao microconforto da minha insignificância, articulada com a irrelevância social geral desta prática e com os interesses claros do público, já abordados, será reexaminar tal posição e alterá-la com lucidez. Por isso, passado o momento em questão, devo considerar o seguinte:
I
1. Ninguém me passou procuração nenhuma para ser o defensor dos compositores portugueses. Tomo posições aqui e ali. Continuarei a fazê-lo quando me aprouver. A sua importância é nula.

2. A exclusão de uma boa quantidade deles da programação normal, não produz nenhum incómodo, nenhuma vontade de intervenção seja de quem for (excepto talvez dos excluídos). Esta é uma das formas de se medir o isolamento social desta prática musical. Por outro lado, alguns outros compositores são lá programados. Por isso, trata-se apenas da assumpção de uma determinada orientação ligada à visão do mundo da música de hoje do Reseaux Varèse. É uma entre várias outras e devo limitar-me a discordar desta e não mais do isso. As várias caravanas desde sempre que passam.

3. Face a estes factores aquela tomada de posição  - se mexeu com alguns aspectos menos positivos de uma instituição do estado, poderei admitir a contra-gosto e pouca convicção - encontrou uma indiferença própria da posição simbólica desta música nas nossas sociedades. Isso custa-nos, talvez, mas tem o grave inconveniente de ser um facto indesmentível.

II
Se juntarmos os três factores referidos: insignificância individual, isolamento simbólico, exclusões e dominações, encontramos boas razões para o que segue.

3. Retiro face a esta análise a minha proclamação de recusa anterior. Bem entendido, sei bem que não serei tocado do mesmo modo. Há até um lado preverso nesta posição - embora apenas visível no interior do nosso micro-mundo. A minha ausência dos programas torna-se-á ainda mais visível sem a tomada de posição, do que com ela em vigor. Mas mais claro ainda é o facto de ser totalmente indiferente ser tocado ou não ser tocado (eu tal como todos os outros). Sou um compositor e escrevo uns livros. Não devo querer mudar o mundo (erro já antigo) e, nesta esfera muito específica, nem protestar mais após cerca de 15 anos de relação atribulada, desde início (2000, se não antes). Devo, repito, reduzir-me à minha insignificância. Face à indiferença geral devo responder com igual atitude e com a mera modéstia de um trabalho. O trabalho ficará (seja qual for o seu destino). Eu não.

4. Outros continuarão a não ser tocados e, no caso de músicos e grupos, a não tocarem. Todos eles deparam com uma enorme indiferença perante tais factos. Os factos, as ausências passam pura e simplesmente desapercebidas. Ninguém presta grande atenção ao que se verifica no interior das instituições culturais, nem na sua acção pública. Têm um papel, cumprem-no parcialmente bem e é suficiente. Depois dos anos 90 existem uma série de novas grandes instituições do estado. Esse facto abriu espaços antes fechados para várias orientações. Isso é positivo. As diferentes tendências que lutam pela primazia (apenas simbólica) nesta prática musical, de um modo ou outro, encontram, aqui ou ali, lugares onde as suas músicas se podem realizar e apresentar publicamente. Também positivo.

5. Devo conseguir separar claramente a minha posição individual de problemas que atingem uma comunidade que tem o problema de não ser capaz de se assumir como tal. Somos todos ilhas com um único habitante. Deste modo, qualquer que seja uma orientação dominante durante um certo tempo - vimos isso durante os 40 anos de Pereira Leal na Fundação Gulbenkian, período igualmente estudado em Música e Poder - ela poderá ser dominante todo esse tempo sem nenhuma espécie de problema, apesar de um texto ou outro escrito sobre o assunto. Nunca será uma prioridade questionar uma dominação geocultural quando ela própria corresponde aquilo que se espera dela, quando está na própria origem histórica de tais instituições e quando, por parte do público que frequenta concertos, por parte do reduzido número de críticos nos jornais - menos do que há 20 ou 30 anos, dizem-me - e por parte de uma musicologia (histórica ou não) que prefere não se envolver em querelas incómodas, tudo é normal desde que esteja assegurada uma capacidade de preencher os 90% de música canónica que é apresentada nas salas e ensinada nas escolas de música do mundo. Tudo factual tal como a existência de milhões de compositores no mundo.

6. A minha posição individual não desperta interesse maior do que as dos nossos ilustres antecessores. Querelas aconteceram, zangas e divergências, tudo isto comum e próprio dos campos culturais. Nada de nunca visto. Trata-se, nesta caso, apenas de aceitar uma exclusão, considerá-la normal face ao antes argumentado, e não fazer dela cavalo de batalha, numa área na qual as batalhas são meramente simbólicas, irrelevantes e se verificam perante a indiferença geral (com a excepção de uns poucos militantes bem intencionados ou alguns defensores de princípios justos mas inoperantes).
 
7. Dito isto farei como bem entender em cada caso, nos anos que me restam antes da entrada definitiva no arquivo, até ele, imaginário. Uma parte do trabalho feito já lá está. Ao contrário do que possa parecer continuo livre, até para mudar de opinião sobre um assunto.  Tirando isso não espero nada. Estou consciente dos meus pequenos privilégios já vividos.

PS: Este é o último texto que escrevo sobre este assunto. Já me incomodou o suficiente, já mereceu as reacções que tinha de receber, já foram compreendidos por mim os equívocos que referi como sendo de uma ingenuidade gritante. Tudo junto, consigo compreender, mas de modo nenhum desejo prolongar. Não vale a pena, nem sequer valho eu a pena.
Siga o mundo e os seus problemas infelizmente muito mais graves do que este.

António Pinho Vargas

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