quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Breve Adenda às conclusões de Música e Poder

Neste texto apresento um número de considerações e de análises de alguns factores emergentes no tempo que mediou entre a redação final de Música e Poder e a actualidade.

1. A crítica ao cânone musical ocidental exerce-se apenas contra a sua pretensão de exclusividade. Hoje essa crítica existe sobretudo nos autores dos países de lingua inglesa confrontados, no caso dos Estados Unidos, com muitas outras tradições musicais e outras culturas minoritárias. O cânone musical ocidental constituiu-se no século XIX e, por essa razão, é constituído maioritariamente por compositores de lingua alemã da genealogia de Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Wagner, Mahler. No cânone operático alguns compositores italianos são parte importante, sobretudo Verdi e Puccini. Em termos históricos, durante o século XX verificou-se um alargamento em direcção ao passado, sobretudo em direcção à música antiga e ao barroco italiano; desse ponto de vista, pode-se considerar que Monteverdi e Vivaldi, entre outros, são igualmente parte dele, num outro patamar de presença. A música destes compositores canónicos é de grande qualidade. A crítica ao cânone não se pode exercer contra as obras que o constituem; sublinha apenas o carácter histórico da sua formação enquanto tal e não aspira a desqualificar as obras que provavelmente sempre serão vistas como parte do arquivo cultural.

2. A sua força mantém-se muito poderosa. Todas as salas de concertos e teatros de ópera do mundo continuam a ser regulados pela ideologia que se formou em torno desse conceito e são amplamente preenchidos com esse repertório. Não é de esperar nas décadas mais próximas, uma alteração do seu carácter regulador dominante.

3. A análise proposta em Música e Poder teve como objecto a música portuguesa. Outros estudos da mesma natureza podiam ou poderão ser feitos em relação à música de muitos outros países europeus que, em maior ou menor grau, se podem agrupar em torno do conceito de periferia, para não falar de outros continentes. Quer no Sul, quer no Norte, quer no Leste da Europa, são muitos os países que podem reclamar igualmente a sua "ausência" genérica do cânone musical ocidental. Deste modo deve-se evitar qualquer tentação de considerar a situação da música portuguesa como especial, como particular, ainda menos como detentora de um destino especial. Dada a sua localização geográfica extrema na Europa e os factores internos de subalternização igualmente com uma raiz histórica de longa duração, será apenas um daqueles países nos quais é mais patente a sua exclusão, ao longo de vários séculos.

4. No campo da criação de hoje, verifica-se um estado de tensão por parte de um campo particular - o subcampo contemporâneo - no qual as tendências continuam a multiplicar-se, no qual vai crescendo e aumentando a presença da música proveniente dos Estados Unidos que, deste modo, disputa a primazia com os países centrais da Europa. Na sua estrutura interna nota-se de forma igualmente cada vez mais notória o aparecimento apoiado pela UE de redes e organizações que favorecem a figura do "jovem compositor". A pedagogia foi sempre vista por Boulez e os seus seguidores como uma factor importante na criação da hegemonia que exerceram durante cerca de 50 anos de forma incontestada. Este conjunto de estruturas de apoio, prossegue esse desígnio, ao mesmo tempo de se vislumbram fortes indícios de um rápido desaparecimento dos programas dos compositores já desaparecidos, ligados a essa corrente, dos programas de concertos, mesmo quando foram dotados de enorme prestígio simbólico e, em muitos casos, autores de obras de grande qualidade. Em todo o caso não caberá aos artistas da categoria etária jovem, seja qual for a sua orientação estética, colocarem-se numa posição crítica. São reais oportunidades que se colocam e que devem ser e tem sido aproveitadas pelos seleccionados para os vários eventos desse tipo, impulsionados institucionalmente pela UE, que financia em parte encontros, festivais e encomendas realizadadas em articulação com instituições culturais de vários países.

5. Face à "crise da indústria discográfica" das majors, abriu-se, como que em espelho, um aumento não apenas de novas práticas musicais, mais indendentes das grandes intituições culturais, como um aumento das reais possibilidades de produzir discos, gravações, videos a baixo custo em etiquetas pequenas e independentes. Este aspecto verifica-se nas várias práticas musicais, tendo, depois do termo "world music" ainda cunhado pelas majors nos anos 1980, surgido o termo indy, como signo de autonomia e capacidade de apresentar os seus produtos noutros circuitos paralelos, minoritários, mas de crescente importância . 

6. No caso da música portuguesa da tradição erudita do século XX até hoje, mais ligada às instituições culturais das quais dependem, a etiqueta Naxos, cuja história foi marcada desde início  pela escolha de músicos de grande qualidade mas que não integravam os catálogos das majors, por isso, de menor prestígio simbólico e cultural, foi tendo cada vez maior importancia na sua atenção aos novos meios tecnológicos: o digital e o streaming. Acabou por se constituir como de grande importância mundial para os artistas, músicos e compositores ditos "menores" pela anterior cultura, o que se manifesta nas numerosas gravações de músicos e compositores menos conhecidos, menos tocados e, muitas vezes, provenientes de países periféricos como é o caso de Portugal. Esta posição e orientação peculiar da Naxos, iniciada através da acção pioneira de Álvaro Cassuto, permite hoje a existência de muitas gravações dos mais importantes compositores portugueses do século XX e alguns ainda vivos como eu próprio e Luís Tinoco.  Este factor é o mais relevante nesta àrea ligada à tradição erudita.

7. Estas várias transformações têm produzido, num certo grau, uma maior abertura e circulação onde antes se verificava estagnação e rotina. No entanto deve-se talvez considerar que, como todas as emergências, quer independentes, quer ligadas a grandes instituições ou a orientações politicas transnacionais, sendo positivas, não substituem a hegemonia canónica existente que se afigura, como é próprio de todos os cânones - parte da afirmação e referência identitária de culturas - dotada de grande capacidade de reprodução e manutenção de primazia na vida musical mundial. Neste sentido se é um facto haver factores de transformação em curso também é um facto a persistência dos valores tradicionais constitutivos.

Post Scriptum: Até aqui escrevi com a distância sociológica que produz um determinado tipo de discurso. Quero terminar de outro modo. Se é verdade que como compositor português sinto por vezes dolorosamente a minha condição, já descrita muitas vezes por outros no passado, outras vezes ela fica por assim dizer suspensa, quer no milagre de ouvir a minha própria música, nem que seja uma vez, quer, devo sublinhar, por uma outra parte constitutiva do meu ser-no-mundo, que fez parte da criação do meu amor pela música a mais profunda admiração e, por vezes, devoção por muitas das obras dos compositores canónicos citados e alguns outros mais. Sendo já, na minha vida, uma arte de interpretação de compositores já mortos, que pude viver e observar na minha fase de aprendizagem e no meu grande gosto por concertos em larga parte da vida adulta, é também necessário para mim afirmar que, naquele repertório, há muita música maravilhosa, música capaz de nos arrancar deste da dureza deste mundo e nos transportar de modo misterioso para um outro lugar, uma outra dimensão, talvez espiritual, que nos toca e nos faz amar muitas daquelas peças há muitos anos e para sempre. Desse modo compreendo "o sentimento de um ocidental" pela música que foi criada neste lugar do mundo, por essa tradição que resiste e resistirá no seu patamar de grandeza absoluta, como produto admirável do trabalho dos humanos que a fizeram. Ter consciência aguda das determinações que existem hoje, não impede, nem contradiz, este afecto.

domingo, 9 de agosto de 2015

Boris Groys e o realismo socialista soviético no contexto das artes no século XX dessa fase.

No seu livro Staline oeuvre d'art totale, editado originalmente em alemão em 1988, livro de uma grande importância e enorme rasgo intelectual e histórico, Boris Groys escreve a dado passo:
"As principais fórmulas e métodos do realismo socialista foram elaborados no curso de discussões complexas de um alto nível intelectual. Os participantes nessas discussões pagavam muitas vezes com a vida uma formulação falhada ou inoportuna, o que aumentava ainda mais a sua responasabilidade em relação a cada palavra pronunciada. Quem lê hoje o relato global destas discussões fica impressionado pela relativa proximidade das posições defendidas pelos participantes, que, eles, percebiam-nas como excluindo-se mutuamente. Esta proximidade entre as posições de partida dos vencedores e das suas vítimas leva a considerar com circunspecção as oposições unânimes, ditadas unicamente pelo julgamento moral sobre os acontecimentos.
A viragem para o realismo socialista integra-se na evolução geral da vanguarda europeia nesses anos. Paralelos podem ser estabelecidos com a arte da Itália fascista ou a Alemanha nazi, mas também com o neo-classicismo francês, com a pintura neo-regionalista americana, a prosa inglesa, americana, francesa, desse tempo, conservadora e politicamente empenhada, a arquitectura historizante, o cartaz político ou publicitário, o estilo cinematográfico de Hollywood. O realismo socialista distingue-se antes de tudo pelo radicalismo dos métodos que lhe permitiram implantar-se e pela pureza de um estilo que abarcava todas as esferas da vida social que, em nenhum outro lugar a não ser a Alemanha, não foi posto em prática com uma tal lógica. O período estalinista conseguiu realizar os sonhos da vanguarda ao organizar toda a vida da sociedade segundo as formas artísticas únicas, mesmo se não se tratavam daqueles que desejava a vanguarda."
p.14 da edição francesa, Editions Jacqueline Chambon.

domingo, 2 de agosto de 2015

"The Location of Culture" versus "A singularidade das obras".

A localização da cultura, título de um livro extraordinário de Homi Bhabha, foi uma das bases para a minha tese de Música e Poder (2011). Não existe obra de arte, que não seja produzida num determinado local do mundo, que não esteja sempre inserida numa determinada cultura. Esse é um aspecto indiscutível da produção artística. Não é feita fora do mundo, directamente no "universo", nem nada lhe garante um carácter universal, que não apenas, na minha perspectiva, como expressão de um desejo de universal, como um potencial de uma coisa lançada no mundo. Há muitas coisas lançadas no mundo: sendo todas universais não haveria senão 'universais'. Todas os artefactos humanos tem uma origem localizada numa cultura. Um filme de Hollywood, não é mais universal do que um filme italiano ou indiano. Aquilo que o torna global - o que não quer dizer universal - é todo um dispositivo que pega nesse artefacto cultural e o dissemina pelo mundo todo (ou quase). Não é portanto um fenómeno que diga respeito à arte cinematográfica mas antes um fenómeno ligado à dominação global da indústria cultural norte americana. Esta análise não diz nada sobre a obra de arte em questão. Diz alguma coisa sobre as relações de poder entre as nações, entre as culturas, globais ou locais, centrais ou periféricas, mas essa dimensão - que tem grande importância - não nos diz nada sobre o filme ou sobre qualquer aspecto dele, a não ser definir a sua localização no concerto dos poderes que operam no mundo.

Julgo que este aspecto será claro. 

Agora imaginemos que eu sou um compositor. Imaginemos que componho uma obra musical. Antes de mais nada ela é uma singularidade, tal como o filme o será. Essa singularidade é intrínseca, única e interna. Não varia, nem deixa de ser como é, se variar o local da sua primeira apresentação e das seguintes. Este facto - a variação do espaço de enunciação - deriva novamente de dimensões que pertencem à ordem dos dispositivos referidos no primeiro ponto. São anteriores ou posteriores e sempre externos em relação à obra. A obra permanece aquilo que é: uma singularidade.  Pensar que o local - há sempre um local - altera a singularidade que cada obra é, para cima ou para baixo, é um erro. A obra é e será sempre igual a si própria. Aquilo que se altera, em termos simbólicos, deriva de considerações da sociologia interna dos campos, das relações de poder em cada momento histórico do que de qualquer outro tipo de consideração.

Mas, definitivamente, não consegue alterar mais do que isso. Não consegue, por mais que se esforce, alterar a singularidade das obras. Não há nada a fazer. Então cada um acredita naquilo que for capaz de formular como juízo de valor. Vale para si próprio e até pode permanecer secreto. Não há nada que me possa fazer acreditar naquilo em que não acredito, nem nada que me obrigue a ter de tornar pública a minha convicção. Não é essa a minha função social nem sinto nenhuma necessidade pessoal de o fazer.  

Foi nessa medida que, em Música e Poder, não teci nenhum juízo de valor sobre nenhuma obra musical das que foram lá referidas. Analisei os modos de produção de globalização, os modos de produção de localização e os dispositivos de poder que funcionam no campo musical. Tudo isto é da maior importância para se compreender a realidade e a realidade simbólica que a envolve: atribuindo ou retirando valor.

Mas, insisto, a singularidade da obra, permanece idêntica a si mesma, quer quando lhe é atribuído valor, quer quando não é. Os outros aspectos são importantes? Certamente que sim, caso contrário não teria passado cerca de 4 anos a trabalhar na investigação. Do mesmo modo, os juízos de valor, as opiniões, as estéticas, são também elas próprias, históricas e geoculturais. Muda o local, mudam os gostos, as opiniões e, quando estas se conseguem elevar a um outro patamar superior de análise, os juizos de valor estéticos. Mas tudo isto, incluindo estes, pertencem à ordem do discurso, à linguagem no interior das sociedades e, nesse sentido, voltam a deslocar-se do ser da obra enquanto tal e a inserir-se num determinado contexto geocultural dotado de hegemonias, de predilecções, de gostos específicos.  O destino das obras pode ser afectado fortemente por estes aspectos, sem dúvida. Mas há um que permanecerá sempre inalterado: a sua singularidade.

A tal obra que o compositor compôs, ergue-se enquanto singular, e nesse sentido, permanece indiferente ao seu próprio destino. É, simplesmente, está dotada de um ser que lhe é próprio, mesmo se arrumada numa obscura biblioteca.
Tal como aqueles quadros de Van Gogh, para dar o exemplo mais clássico de todos os mitos modernos, que à sua morte não tinham qualquer valor. Era falso. Mas não porque hoje valem milhões como se pensa e argumenta em geral. Mas porque lá, neles próprios, estavam depositadas as componentes que fazem de cada um singularidades. Estavam e continuaram a estar sempre, independentemente das mudanças do seu valor de mercado. Que hoje o seu valor seja aquele que sabemos pertence à ordem das mudanças sociais que obrigam os historiadores a tentarem responder a esses mistérios do passado, os das relações de poder mutáveis, próprias dos campos artísticos, no caso das artes plásticas, a ordem de crescimento do valor de mercado que atingiu proporções astronómicas sobretudo desde os anos 1980. Se não tivesse ocorrido uma tal mudança profunda nos critérios sociais dominantes, os quadros do holandês, teriam permanecido onde estavam.

No entanto a singularidade essencial esteve sempre lá. Tanto quando não valiam nada, como quando valem milhões. 

António Pinho Vargas, Agosto de 2015.