segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Sobre o ensino da Composição

Ser professor de composição, como de qualquer outra coisa, é o exercício de uma função, à partida dotada de uma certa forma de autoridade, destinada a ser verificada de cada vez na sua prática semanal, sendo a seguinte a mais importante das suas possíveis verificações de eficácia, a saber, o facto de estar destinada a deixar de ser autoridade, na medida em que, ao produzir um outro autónomo, cessa esse atributo provisório. Contribuindo para a auto-criação de um outro autónomo e independente, livre, capaz de fazer por si, resulta na anulação daquela autoridade provisória. Assenta numa história de vida, num conjunto de saberes antes adquiridos, passíveis de discussão e, nesse sentido, tanto mais correctamente compreendidos quanto mais são vistos e exercidos como provisórios, delimitados no tempo e atentos ao devir das coisas no mundo. Estas fornecem, por si só, uma aprendizagem. Cada um dos “outros", momentaneamente no lugar de alunos, contém em si um potencial. Favorecer o desenvolvimento desse potencial é o núcleo fundamental de todo o ensino. Pode passar certamente por uma transmissão de alguns aspectos designados por 'saberes', mas enquanto exercício de uma arte, destinam-se a ser ultrapassados e/ou usados de outro modo pelos alunos provisórios. Será esse o melhor resultado possível. Haverá uma zona de mistério que reside na própria noção de composição enquanto arte que é intransmissível. Mas há dois modelos opostos face a esta realidade. Um que pressupõe erradamente que o professor é detentor de um saber que se deve erigir em modelo a imitar. Este modelo falha sempre, uma vez que imitar só pode ser eficaz numa primeira fase. Quanto mais depressa acabar tal fase melhor. Manifesta-se de um outro modo pela imitação de partituras estudadas, imitação de modos de escrita. As partituras que geralmente servem para esta aprendizagem específica, não expõem senão uma parte daquilo que os compositores ilustres ou menos ilustres fizeram. O que uma partitura mostra é certamente a condição de possibilidade da música: mostra a sua notação final. A análise pode, se dirigida para aspectos específicos do seu conteúdo, ser muito útil. O que nunca revela é a parte mais difícil de penetrar, de descobrir, de revelar, ou seja, a parte sobre a qual Boulez escrevia aquilo que aqui relembro: "no início de uma análise temos a sensação de que vamos descobrindo elementos, técnicas, maneiras e a obra parece desvendar-se perante nós. Quanto mais prosseguimos na análise mais claramente se inverte essa impressão e mais forte surge o lado impenetrável, irredutível, daquela criação musical". No entanto, nesse processo, se não se obtém a resposta procurada, pelo caminho da busca, outras respostas foram sendo dadas e aí reside o essencial da aprendizagem que cada um pode retirar. De certo modo, a responsabilidade da descoberta de elementos muito úteis para cada um, está depositada naquele que analisa, que estuda, mais do que na obra ela própria. A obra apresenta-se no seus códigos de notação. Eles põem em evidência alguns aspectos. Mas de modo nenhum mostram o seu segredo intrínseco nem as determinações que operaram nos momentos da sua criação, com excepção dos casos de composições que usam algoritmos automáticos.
Em qualquer caso, todo o ensino quer do professor, quer das partituras estudadas, destina-se a criar um criador e não a criar um professor. Se irá manter as duas actividades - o que é provável - isso deve-se mais ao momento actual dessa prática musical e à sua relação complexa com o mundo musical real. A maior parte dos compositores do século XX foram professores. As excepções explicam-se de outro modo: foram maestros, directores de instituições, de festivais, etc., ou tudo isto acumulado numa mesma pessoa, sendo novamente Pierre Boulez o caso mais paradigmático. As poucas excepções confirmam a regra: a maior parte dos que conhecemos foram professores. 

António Pinho Vargas, Outubro de 2017.

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